Salvador, 26 de setembro de 2014
O auditório Manuel Querino, do
Centro de Cultura da Câmara de Vereadores de Salvador, ficou lotado para a
festa de abertura do III Festival de Arte-Educação A Cidade CRIA Cenários de
Cidadania, realizada no dia 17 de setembro de 2014. O evento reuniu os jovens
dos grupos de teatro e suas famílias, amigos, parceiros e gente que já passou
pelo CRIA, mas que mantém laços com a instituição.
Convidados lotam auditório do Centro de Cultura CMS
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E nada melhor que começar uma
festa de aniversário do que recordando o que de bom ficou e que ainda produz
frutos. Ao longo dos seus 20 anos de existência, o CRIA reúne muitas histórias
e os marcos destas realizações foram relembrados nas falas emocionadas de Beth
Vieira e Maria Eleonora Rabello, da Coordenação Geral.
“Graças à participação coletiva e
a muita solidariedade a gente realiza este terceiro festival”, declarou Beth,
ao se referir a todas as pessoas que acreditam no CRIA, que investiram,
apoiaram e colaboraram, sejam elas pessoas físicas ou jurídicas, agências ou
instituições públicas.
Um dos marcos citados foi o primeiro
projeto ‘Educação um Exercício de Cidadania’, em 1994, que formou professores da
5ª a 8ª série da rede municipal de educação e profissionais de saúde da rede
pública, com duração de cinco anos. “Com esse projeto, a gente conseguiu levar
para dentro da escola pública as questões da vida cidadã, dos direitos sexuais
e reprodutivos por meio da metodologia que o CRIA vem pesquisando e desenvolvendo
ao longo desses 20 anos”, lembrou Maria Eleonora Rabêllo.
Outro marco destacado por Beth Vieira
foi o Movimento de Intercâmbio Artístico Cultural pela Cidadania (MIAC), criando
em 1997, a partir de um caso emblemático de violação de direitos. O CRIA
convocou instituições parceiras da cidade para formar o MIAC que por sua vez
reuniu 200 instituições públicas, governamentais e não governamentais, em torno
da luta pelos direitos humanos com foco na proteção integral de crianças e
adolescentes.
Maria Eleonora Rabêllo e Beth Vieira apresentam marcos |
Ela lembrou ainda da realização,
em 1998, do I Festival do MIAC com o tema ‘Adolescente e a Arte pelos Direitos
Humanos’, resultado das ações socioculturais e de mobilização de recursos em
redes. A partir daí, inicia-se o processo de formação e produção cultural para
os jovens dessas diversas instituições que passaram a assumir o papel de jovens
produtores culturais das suas comunidades.
O CRIA sempre formou jovens na
perspectiva de disseminar suas práticas e seus conhecimentos, de acordo com
Rabêllo. Ela lembrou ainda que eles eram estimulados a atuar dentro da escola,
até que em 2001, a instituição reconheceu que os estudantes estavam atuando
mais nas comunidades do que no ambiente escolar.
“Surpreendentemente, a escola se
revela integrante da comunidade e os jovens começam a atuar dentro das escolas
das suas comunidades”, ressaltou Eleonora. A partir daí, de acordo com a
coordenadora, o CRIA volta o foco para essa formação para que os jovens possam
desenvolver esses projetos comunitários e assim impactar suas escolas e suas
comunidades.
Ruy Pavan destaca avanços
e desafios na luta pelos direitos das crianças e adolescentes
Após a apresentação dos marcos da
linha do tempo, foi a vez de um grande parceiro do CRIA tomar a palavra. Para
Ruy Pavan, que foi coordenador do Escritório Regional para os Estados de
Sergipe e Bahia do Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência
(Unicef) durante muito tempo, o maior prêmio e mais significativo nesses vinte
anos é ter feito tudo com dignidade.
“Não é tão difícil uma
instituição receber prêmios, ser reconhecida, desenvolver um trabalho
superbacana. Isso é possível. Sou testemunha e acompanhei várias discussões e
vi que o CRIA sempre manteve seus princípios, sua dignidade e aquilo em que
acreditava”, disse por se tratar de uma instituição que necessita de recursos e
de apoios para poder sobreviver. “Acho que isso é um grande aprendizado para as
outras organizações”, completou.
Ele também traçou um breve
panorama do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em vigor há 25 anos no
país, e destacou que não foi um processo linear. “Através da luta pelos
direitos das crianças, muita gente se engajou na construção da democracia
brasileira e na luta pelos direitos humanos no país”.
Pavan destaca parceria com o CRIA e os 25 anos do ECA |
“Esses meninos que estão hoje no CRIA são diferentes daqueles que chegaram vinte anos atrás para começar uma coisa que era uma grande novidade, que era o acesso à cultura, à arte”.
(Ruy Pavan)
Pavan aproveitou para fazer uma
análise comparativa de como as políticas públicas serviram como catalisadoras
dos movimentos sociais e das organizações não governamentais, citando o CRIA
como exemplo. Para ele, não há dúvidas de que
as políticas públicas evoluíram, com muito mais meninos e meninas na escola,
mas que ainda é preciso melhorar a qualidade da educação, bem como a da
estrutura do sistema de acesso à cultura e criação de um sistema de acesso à
prática esportiva.
“Acho que nossa democracia tem
que ser preservada, mesmo com todos os seus erros e com seus acertos, e que o
estatuto continue sendo um instrumento de mobilização através das organizações
pra que a gente possa estar mantendo isso como patamar civilizatório para nos
próximos vinte anos avançarmos e alcançar novas conquistas sobre o que já foi
alcançado”, concluiu.
Makota Valdina chama atenção para respeito a ancestralidade e união
Outro destaque da abertura foi a
participação da educadora, ativista negra religiosa do candomblé, Makota
Valdina, pessoa de grande importância na vida do CRIA, convidada para dar as
bênçãos ao Festival. Com a franqueza e sabedoria que lhe são peculiares, ela
falou de fé, espiritualidade e religiosidade. Para ela, a juventude tem uma
grande responsabilidade na questão racial e na questão religiosa diante da
conjuntura atual, ainda que o país tenha tido muitos avanços nesses temas.
Para ela, um fator muito
preocupante ultimamente são as situações de discriminação e intolerância
religiosa geradas pela falta de conhecimento da própria história. “Eu tenho
observado também que tem muitos jovens negros que estão negando sua
ancestralidade e sua identidade. Vocês podem ser da religião que vocês quiserem
ser. Vocês podem até não ter religião. Mas, não percam a sua identidade. Quando
a gente sabe quem a gente é, a gente não tem amarras. Então, tenham cuidado com
o tipo de dominação que temos tido hoje em nome de religião. Não se deixem
amarrar. Não se deixem escravizar”, disse para uma plateia atenta.
“Respeitem a sua negritude, respeitem a sua ancestralidade,
respeitem a sua história e eduquem e ensinem aos outros a respeitarem também.”
(Makota Valdina)
(Makota Valdina)
Antes de encerrar sua fala, Makota Valdina apresentou um canto religioso que fala de luta e de união e que trouxe um momento de serenidade ao evento. A canção fala de Nkosi (Senhor dos caminhos, das estradas de terra que é um Nkisi nos candomblés de Nação Angola, equivalente, nos Candomblés de Nação Ketu a um orixá ogum e ao Vodum Vu), andando pela floresta “mas serve pra gente que anda no meio do concreto”, explicou. “Serve para cada um de nós que aqui está. Ninguém anda no CRIA sozinho. No CRIA, somos nós, e não eu. E a gente, por isso, precisa saber desse canto, que um precisa estar agarrado e tomando conta do outro pra não cair. Que a gente continue junto e se ajudando, até o dia em que todo mundo realmente seja livre aqui.”
As sábias palavras, desta senhora
de 70 anos, deixaram todos comovidos, como a escritora Mabel Veloso. “A fala de
Makota me deixou muito impressionada”, disse emocionada. “Porque nos preocupa
muito o racismo, a discriminação da religião, e eu acho que ela falou muito bem
e chamou a atenção, que a gente precisa dessa união, e o CRIA faz isso. A
palavra CRIA já diz: cria para o bem”.
Dimas Galvão, da Coordenadoria
Ecumênica de Serviço (CESE), uma das instituições apoiadoras do festival,
também compartilha da mesma ideia. “Essa
conexão com cultura, essa discussão sobre o racismo, a inclusão da juventude
pela arte, tudo isso é muito importante”, declarou.
Parceiros comparecem em peso ao festival
Para compartilhar desse momento
de boas-vindas ao festival, estiveram presentes pessoas que acompanham, fazem
ou fizeram parte da história do CRIA em algum momento. Uma delas é a professora
e escritora, Mabel Veloso. “Estou seguindo sempre esses passos bonitos que o
CRIA vem dando e fico muito feliz de ver o resultado”, declarou.
“Eu vi nascer o CRIA, então é como
quando você encontra aquele menininho que você viu nascer e ver que hoje ele é
gente grande e bonita que virou”, disse Fernanda Cabrini, presidente do CRIA.
Para ela, a mudança para um país melhor só se dá através da educação. “E quando
você junta a educação com a arte, além de enriquecer o cérebro e os
conhecimentos, enriquece a alma das pessoas, então acho que o caminho é por aí
mesmo”, completou.
Fernanda Cabrini, presidente do CRIA (à direita) |
Parceira também neste festival, a
Oi Kabum! vivencia as atividades do CRIA desde que tudo começou, como bem disse
Isabel Gouveia, coordenadora da instituição. “Fui do conselho artístico,
fotografei as primeiras peças, os primeiros dias, eu conheço o embrião todo e
vivi o CRIA desde o início. Participei de todos os MIAC como educadora, então,
ter relembrado toda essa história me emocionou muito e é uma coisa que nos
fortalece a nós todos que trabalhamos nessa área tão desafiadora”. Vale lembrar
que a Oi Kabum! ofereceu uma oficina de fotografia criativa para o público do
festival ministrada por jovens arte-educadores da instituição.
Presidente do IPAC e Secretário de Cultura, Albino Rubim |
Para o Secretário de Cultura do
Estado, Albino Rubim, que sempre acompanha os festivais, o CRIA é hoje uma
instituição de referência nessa conexão entre educação e cultura, não só na
Bahia, mas nacional e internacionalmente também.
“É belíssimo o trabalho e essa
capacidade que tem de educar e trazer pessoas que são da periferia para
atividades culturais, e incorporando pessoas que passaram pela instituição e
que hoje desempenham ações culturais importantes na cidade. Parabéns ao CRIA e ao
Festival”.
A Orquestra de Berimbaus Afinados
Mestre Dainho Xequerê fechou o evento com uma bela apresentação que empolgou a
todos que estavam presentes. Ao som dos instrumentos metalizados,
confeccionados com corda de piano e vara de alumínio, convidados e banda
cantaram juntos, em sussurro, o Hino ao Senhor do Bonfim, em perfeita harmonia,
numa espécie de rito de abertura para a programação que estava por vir.
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